Homocisteína: do rodapé do exame ao centro da conversa

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Flávia Libonati

Durante muito tempo, homocisteína foi tratada como um “exame opcional” ou um detalhe reservado a casos muito específicos. Na prática, os dados mais recentes mostram o oposto: estamos diante de um marcador que integra metabolismo, nutrição, inflamação e risco cardiovascular de forma muito mais ampla do que se imaginava.

Em vez de enxergá-la como um número isolado, precisamos entender a homocisteína como parte de um eixo bioquímico que conversa com metilação, epigenética, função endotelial e até expressão gênica.

O que é, de fato, a homocisteína?

A homocisteína é um aminoácido que surge no ciclo da metionina, dependente de vitaminas como folato, B12, B6 e riboflavina para ser metabolizada de forma adequada. Quando esse ciclo está desregulado, a homocisteína tende a se acumular no sangue (hiper-homocisteinemia) e, com ela, uma série de metabólitos potencialmente tóxicos.
PubMed

Por isso, ela funciona como:

  • marcador metabólico
  • espelho de status nutricional (especialmente vitaminas do complexo B)
  • indicador de risco vascular e inflamatório
  • sinal precoce de estresse bioquímico

O que a nova leva de evidências está dizendo

Nos últimos anos, revisões amplas e estudos de grande porte consolidaram a ligação entre homocisteína elevada e múltiplos desfechos clínicos:

  • maior risco de doenças cardiovasculares e AVC
  • associação com alguns tipos de câncer, incluindo tumores de trato digestivo
  • relação com declínio cognitivo e doenças neurodegenerativas, em parte mediada por metabólitos derivados da homocisteína

Não estamos falando de uma hipótese isolada, mas de um corpo de evidências que inclui estudos observacionais, genéticos e clínicos, todos apontando na mesma direção.

Não é só a homocisteína total: os metabólitos que machucam

Um ponto importante que vem ganhando força é que o problema não é apenas o valor da homocisteína total no exame. Metabólitos como S-adenosil-homocisteína (AdoHcy), Hcy-tiolactona e proteínas N-homocisteinizadas parecem exercer boa parte do dano:

  • promovem disfunção endotelial
  • favorecem inflamação e estresse oxidativo
  • alteram vias de sinalização como mTOR
  • interferem em mecanismos epigenéticos e microRNAs

Isso ajuda a entender por que algumas pessoas apresentam risco aumentado mesmo com alterações relativamente discretas em exames de rotina.

Tireoide e homocisteína: uma via de mão dupla

Com o aumento dos diagnósticos de doenças da tireoide, começou a ficar claro que homocisteína também entra nessa história. Uma revisão publicada em 2025 no Frontiers in Endocrinology destacou que níveis elevados de homocisteína são mais frequentes em pacientes com hipotireoidismo, inclusive na forma subclínica.

Isso tem pelo menos três implicações:

  • o hipotireoidismo pode contribuir para elevar homocisteína
  • homocisteína alta, por sua vez, agrava risco cardiovascular nesses pacientes
  • acompanhar os dois marcadores de forma integrada permite uma visão mais completa do risco global

É fisiologia pura, mas que ainda leva tempo para ser absorvida pela prática convencional.

MESA: quando combinamos marcadores, o risco muda de patamar

Outro ponto importante vem de estudos de coorte de grande porte, como o MESA (Multi-Ethnic Study of Atherosclerosis). Esse estudo acompanhou mais de 6600 indivíduos por cerca de 15 anos e avaliou o impacto combinado de três marcadores:

  • homocisteína total
  • Lp(a) (lipoproteína(a))
  • hs-CRP (PCR ultrassensível)

Os resultados mostraram que:

  • quando mais de um marcador estava elevado, o risco de doença coronariana e AVC aumentava de forma relevante
  • quando os três estavam simultaneamente elevados, o risco de doença coronariana aproximadamente dobrava
  • o risco de AVC chegava perto de triplicar em alguns modelos de Cox ajustados

Ou seja: não é apenas “um exame alterado”, mas a combinação de biomarcadores que muda a curva de risco real do paciente.

Se a evidência é tão forte, por que não está em todas as diretrizes?
Essa é a pergunta incômoda.
Se há estudos mecanísticos, genéticos, observacionais e clínicos apontando na mesma direção, por que a homocisteína ainda não entrou de forma ampla nos check-ups de rotina?

Uma parte da resposta é desconfortável, mas precisa ser dita:
corrigir homocisteína passa, em grande parte, por nutrientes, não por um novo fármaco patenteável.

  • folato
  • vitamina B12
  • vitamina B6
  • riboflavina
  • colina
  • betaina

São recursos fundamentais, mas que não movimentam bilhões em novas patentes. Isso tende a retardar o interesse em transformar esse marcador em prioridade de protocolo.

O tempo da ciência vs. o tempo do paciente

A medicina tradicional costuma levar anos para incorporar novas evidências em diretrizes formais. Enquanto isso, o paciente atual:

  • pesquisa
  • compara fontes
  • reconhece quem apenas repete protocolos
  • percebe quem realmente entende fisiologia e integra os dados

Na prática, muitos pacientes já não aceitam esperar mais de uma década para que informações sólidas cheguem à ponta do cuidado.

Onde a medicina funcional integrativa se antecipa

A medicina funcional integrativa não “cria moda”.
Ela se antecipa porque:

  • olha o organismo como um sistema interligado
  • considera mecanismos bioquímicos e contextos individuais
  • integra nutrição, hormônios, inflamação, estilo de vida e genética
  • utiliza marcadores como homocisteína de forma responsável, tendo a ciência como base e não como adereço de marketing

Isso permite que intervenções em eixo metilação–homocisteína sejam usadas para prevenção e redução de risco, sempre com atenção à individualidade bioquímica de cada pessoa.

O que isso significa na prática clínica

Na consulta, interpretar homocisteína com profundidade não é sair pedindo exames em excesso, nem prometer resultados mágicos.
É:

  • identificar quando faz sentido dosar
  • correlacionar com contexto clínico, sintomas, histórico familiar e outros biomarcadores
  • considerar ajustes nutricionais, suplementação bem indicada e, quando necessário, avaliação de fatores genéticos e de estilo de vida
  • acompanhar ao longo do tempo, observando não apenas o número, mas a resposta clínica e global do paciente

Sempre com base em evidências e dentro de um plano estruturado, não em soluções simplistas.

Conclusão: um marcador do futuro, disponível hoje

Homocisteína é um marcador que ajuda a separar duas formas de enxergar a medicina:

  • a que espera a diretriz mudar
  • e a que acompanha de perto a evolução da ciência

Ela não precisa de um remédio novo para ser relevante.
Precisa de olhar clínico, raciocínio fisiológico e coragem intelectual para integrar o que já sabemos à prática diária, com segurança e responsabilidade.

Esse é o tipo de abordagem que transforma prevenção em algo concreto, e não em discurso.